O bicho é nego! - por Thaíses Dutra

O bicho é nego!

Ainda moleca, dessas criadas na rabeira dos pais mas que não perdia uma tarde na casa dos avós para ter a chance de comer doce de lata, queijo coalho ou carne assada na brasa, Matildes fora acostumada ouvir rotineiramente que gato preto causa azar, preto é cor de quem está de luto e por falar em luto, acredita que dona Toinha, mulher de seu Jeová, perdeu o esposo a menos de dois meses e não seguiu sequer o ritual de viúva? Disse sua avó, enquanto tecia retalhos para montar um tapete de banheiro, afirmando ainda que os tempos são outros e que ninguém sabe mais o que é respeito nem devoção. Em tons de piadas, Matilde se divertia ao ouvir ser pronunciado pelo seu povo que se fez merda foi por causa da cor, afinal, o bicho era nego! Outro dia, aquela menina que nem era branca nem preta- por vezes encardida- ficava se perguntando porque era que a coleguinha de sala, por ser a mais branquinha era a sempre escolhida para representante de sala. A inocência ainda não permitia que ela entendesse aquela triste verdade. Ah, quase esqueço de dizer que se existia uma coisa que a menina encardida não perdia era o programa Vale a pena ver de novo. Entre “O cravo e a Rosa”, “A usurpadora” e “Da cor do pecado”, o que menos chamava a atenção de Matildes era o porquê daqueles casais sofrerem tanto para ficarem juntos, e ela tampouco compreendia por que o preto era a cor do pecado. Como assim? Pecado não é uma coisa errada? É muito complexo essas coisas de adulto, mas se era coisa de adulto, não tinha pra quê menina enxerida como Matildes está se questionado, ora bolas! Dia desses, já na mocidade, Matildes que só brincava com meninos, viu sua prima- negra, pobre e moradora de bairro afastado- se apaixonar pelo menininho branco que comia carne em todas as refeições e que cheirava a leite de rosa. Leite de rosa era coisa de rico e a pobre da Maria nem se dava conta que com a sua cor ela jamais conquistaria o amor e a família daquele menino. O que mais impressiona nessa história toda é que, mesmo Matildes tendo estudado bem direitinho as fases educacionais que o sistema exige, ela nunca ouviu falar que era afrodescendente. Era capaz de Matildes- a menina sem cor- caso fosse questionada, dizer sem pestanejar que era branca porque essa era a cor apontada pelos seus pais quando foram registrá-la. Pois bem, Matildes saiu da educação básica sem ter coragem de se dizer negra, ela não conseguia se ver nas peças da escola se não fosse para imitar defunto ou ser doméstica- tarefa, muitas vezes, destinadas às meninas pobres, mais feinhas e/ou negras. Tá aí uma coisa que nunca vi na escola foi uma personagem negra com a função de madame, princesa ou médica! Contudo, por ser sempre tão teimosa, Matilde pesquisou, estudou e conheceu sua história e sabe que todo mundo, do branco ao preto, carrega consigo traços afrodescendentes e embora a menina já tenha percebido que em sua cidade e em seu país, os negros têm assumido importantes papéis na sociedade mesmo que de maneira paliativa, ela teme que o discurso mordaz que tem ouvido nos últimos dias, nada mais seja que o preconceito velado, aquele que, até então embutido por um período de tempo, recriou manias e formas de manifestar-se transvestido de um racismo em estilo cômico mas que, por dentro, se enraíza no ódio, na desigualdade e na crendice que me diz em tom de sarcasmo que o negro nem para procriar serve! Ê, Matildes, você ainda precisa aprender muito desse mundo velho...

20 de novembro- Dia da Consciência Negra por Thaises Dutra (Especialista em Relações étnicas pela UFCG).

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